Covid-19 expõe mazelas da falta de saneamento básico
A pandemia da Covid-19, que espalha a doença dos grandes centros para o interior do país, passando pelas periferias, expõe as mazelas de anos seguidos sem os investimentos necessários em saneamento básico, penalizando a população socialmente mais vulnerável, e chama a atenção para a urgência da universalização dos serviços. Não se sabe quando será a próxima crise sanitária, mas o mundo aprendeu que não está imune a elas.
Dados preliminares produzidos pelo IBGE em 2019 para o próximo Censo Demográfico, adiado para 2021 em razão da pandemia, apontam a existência de 5,127 milhões de domicílios situados em 13.151 aglomerados subnormais (favelas, grotas, palafitas e mocambos, entre outras formas de ocupação irregular), onde a população vive em condições socioeconômicas de saneamento e de moradia precárias, estando suscetível a todo tipo de doença, inclusive à nova Covid-19.
Entre os estados brasileiros, o Amazonas tem a maior proporção de domicílios em aglomerados subnormais. Belém (PA) é a capital com mais domicílios ocupados nessa condição – 55,5%. Manaus (AM) tem 53,3% dos domicílios nesses aglomerados, e Salvador (BA) vem em seguida, com 41,8%.
A Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia fez um cruzamento do volume de esgoto tratado com as mortes pela Covid-19 nas capitais brasileiras. Os dados foram compilados por Brasil.io, um sistema de dados públicos disponibilizados em formato acessível. Os números referentes ao esgotamento sanitário foram levantados pelo Instituto Trata Brasil. O parâmetro para os óbitos é de 6 de junho.
O estudo mostra que a média de óbitos por 100 mil habitantes é maior nas cidades com menor volume de esgoto tratado (menos de 40%) e menor naquelas com maior o volume (mais de 70%). O gráfico ainda considera capitais em um patamar intermediário, entre 40% e 70% de esgoto tratado.
Belém e Manaus figuram com as piores taxas de óbitos por 100 mil habitantes: Belém com 94,86 e Manaus com 66,98.
Na faixa entre 40% e 70% de esgoto tratado, Fortaleza (CE) vem com 92,12 mortes/100 mil habitantes, seguida por Recife, com 75,04, e Rio de Janeiro, com 65,50.
Entre as cidades com maior volume de esgoto tratado, as melhores taxas são de Brasília (DF), 6,17; Curitiba (PR), 2,74; e Belo Horizonte (MG), 2,35.
Fonte de doenças
O trabalho desenvolvido pela Secretaria de Política Econômica é uma contribuição de valor estatístico, mas não permite avaliações definitivas sobre a contaminação do coronavírus por intermédio do esgoto. Pesquisas científicas e estudos publicados em uma série de países, a exemplo dos Estados Unidos, Holanda, França, Espanha e Itália, não comprovaram, até aqui, a transmissão do novo coronavírus por meio de fezes (feco-oral).
Pesquisa desenvolvida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT ETEs Sustentáveis), em parceria com a Agência Nacional de Águas (ANA), vem localizando o material genético do vírus nas redes de esgoto de Belo Horizonte e Contagem. Não se trata, contudo, do vírus viável, com poder de infectar.
Em recente webinar sobre a pesquisa, o professor César Mota, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG, chamou a atenção para a inexistência de artigos comprovando a transmissão feco-oral desse vírus. Ele lembrou que o esgoto já é uma fonte quase inesgotável de doenças.
São exemplos de doenças decorrentes da falta de tratamento de esgoto a diarreia por Escherichia coli, a febre tifoide, causada pelo consumo de água ou alimentos contaminados com a bactéria Salmonella enterica sorotipo Typhi, e a hepatite A, doença viral transmitida pela via fecal-oral. O novo coronavírus é envelopado em uma camada de gordura, o que o torna sensível à água e sabão, sendo, provavelmente, sensível a outros detergentes presentes nas redes coletoras de esgoto.
Se é que existem vantagens, estas terminariam aí. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) referentes a 2018, publicados em dezembro do ano seguinte pela Secretaria Nacional de Saneamento/Ministério do Desenvolvimento Regional, indicam que 46,8% do total da população não contavam com esgoto coletado. De acordo com estimativas do IBGE para aquele ano, isso representava 97,5 milhões de pessoas. Mais da metade não dispunha de tratamento para o esgoto gerado.
O professor César Mota não considera uma boa ideia a implementação de novos processos de desinfecção em Estações de Tratamento de Esgotos de modo geral, tanto porque não se tem evidência de que o esgoto pode transmitir o coronavírus quanto porque o Brasil precisa investir muito mais na coleta do esgoto.
Abastecimento de água
O simples hábito de lavar as mãos com água e sabão, que a ciência considera a principal atitude individual para barrar o coronavírus, torna-se uma questão de difícil alcance para um enorme contingente de pessoas que não dispõem de água tratada.
Com base em dados do SNIS/2018, 16,4% da população, correspondente, então, a 34 milhões de pessoas, não contavam com atendimento em rede de abastecimento de água. Em áreas urbanas, a população não-atendida era estimada em 7,2% do total de habitantes, ou 15 milhões de pessoas, segundo estimativas do IBGE para aquele ano.
O avanço da Covid para a periferia e o interior deixa mais evidente o problema. Especialistas dedicados a entender a circulação do vírus não têm dúvida de que a falta de acesso à água e às noções básicas de higienização das mãos tornam a população carente ainda mais vulnerável. Para enfrentar essa precariedade, desde a confirmação do primeiro caso de Covid no Brasil, em 26 de fevereiro, são incontáveis as iniciativas da sociedade para oferecer água para higienização da população mais pobre.
No Rio de Janeiro, o Instituto Insolar desenvolveu, no Morro Santa Marta, no bairro de Botafogo, um projeto de instalação de pontos de higienização comunitária (PHCs), geridos de forma colaborativa. Os PHCs contam com fornecimento de água, bio-sabão e álcool em gel. Parceiros do Insolar replicam a iniciativa em outras comunidades da cidade.
A cidade de Breves, a maior da Ilha de Marajó, no Pará, foi apontada em pesquisa da Universidade de Pelotas (RS) como a de maior incidência da Covid-19 no país (dados do final de maio), entre 133 cidades analisadas. Com 102,7 mil habitantes, o percentual de população contaminada foi estimado em aproximadamente 25%. Breves sofre com a falta de água. O abastecimento é racionado em turnos de duas horas, de manhã e à noite.
A Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que tem entre as suas atribuições levar o saneamento básico a municípios com menos de 50 mil habitantes e a comunidades especais, como os quilombolas e os povos indígenas, informa que vem trabalhando, dentro do escopo de suas competências, para dar celeridade aos convênios celebrados com os municípios. Sofre, porém, com um processo de troca de comando e de visão estratégica, que, necessariamente, precisa estar alinhada com o Ministério da Saúde, ao qual está vinculada, e com o Palácio do Planalto.
Investimentos no setor
A crise sanitária desencadeou uma crise econômica de proporções inéditas, com consequências dramáticas para o quadro fiscal do país. As previsões do Ministério da Economia para o déficit orçamentário de 2020 já gravitam em torno dos R$ 600 bilhões.
Na reunião ministerial de 22 abril, tornada pública por decisão judicial, o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticou o lançamento, por outros setores do governo, do Plano Pró-Brasil de recuperação da economia com investimentos públicos na área de infraestrutura financiados pelo governo.
Guedes disse que contava com a entrada de R$ 100 bilhões de investimentos externos para saneamento básico, R$ 100 bilhões para o leilão da cessão onerosa de petróleo, R$ 100 bilhões para mineração e R$ 230 bilhões de concessões de serviços de infraestrutura, totalizando cerca de R$ 500 bilhões. O ministro, então, indagou de outros colegas: “Cadê o dinheiro do governo para fazer isso? ” Logo em seguida, tratou ele mesmo de responder: “Não tem. ”
O ministro deposita as expectativas para atração de investimentos externos para o setor no Novo Marco Legal do Saneamento, que teve a aprovação concluída pelo Congresso em junho.
Atualmente, o Ministério da Economia vem dando apoio à estruturação da concessão dos serviços de abastecimento de água e esgoto sanitário pelos governos estaduais em blocos de municípios e pelas prefeituras em sistemas isolados. O processo é conduzido pelo Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e realizado pelo BNDES e pela Caixa. Segundo a coordenação do PPI, as estruturações dos estados do Amapá, Alagoas e Rio de Janeiro têm cronogramas de licitação planejados para 2020, enquanto as do Acre, Ceará e Rio Grande do Sul estão programadas para o próximo ano.